Dependência química e trabalho: uso funcional e disfuncional de drogas nos contextos laborais
14/06/2025

Por Raique Almeida
O artigo propõe uma reflexão crítica sobre a complexa relação entre o uso de substâncias psicoativas e os contextos de trabalho no mundo contemporâneo. A autora parte do pressuposto de que o uso de drogas no ambiente laboral não pode ser compreendido de forma simplista, como um fenômeno exclusivamente patológico ou desviante. Pelo contrário, esse uso deve ser analisado à luz das transformações nas relações de trabalho, da precarização laboral e das exigências cada vez mais intensas impostas aos trabalhadores.
Nesse sentido, o artigo destaca que o uso de substâncias pode assumir tanto um caráter funcional no sentido de manter o desempenho, a produtividade e a adaptação do trabalhador às exigências do meio quanto disfuncional, quando compromete a saúde, o rendimento e as relações interpessoais do sujeito. Essa ambivalência é central para compreender como determinadas substâncias, como álcool, ansiolíticos, estimulantes e até drogas ilícitas, são incorporadas na rotina de trabalhadores de diferentes setores, muitas vezes como estratégia de enfrentamento de condições adversas, tais como jornadas excessivas, metas inatingíveis, insegurança no emprego e sofrimento psíquico.
Lima desenvolve sua análise a partir de uma abordagem psicossociológica, considerando o trabalho não apenas como uma atividade produtiva, mas como um espaço simbólico que estrutura a identidade e a vida subjetiva dos indivíduos. Nesse contexto, o uso de drogas aparece como uma tentativa de mediação entre o sujeito e as contradições do mundo do trabalho. A autora argumenta que o discurso institucional tende a ocultar ou patologizar essa relação, privilegiando políticas de controle e repressão ao uso de substâncias, sem enfrentar os fatores estruturais que produzem o sofrimento e favorecem o consumo.
A medicalização dos comportamentos e a individualização dos problemas também são discutidas como formas de silenciar o caráter social da questão, deslocando a responsabilidade para o indivíduo em detrimento de uma crítica às condições laborais. Assim, o artigo propõe uma ampliação do olhar sobre o uso de substâncias, compreendendo-o como uma prática complexa, muitas vezes funcional e adaptativa, ainda que com custos importantes à saúde do trabalhador.
A autora chama a atenção para a necessidade de construir políticas públicas e intervenções nos locais de trabalho que levem em conta as múltiplas dimensões do fenômeno subjetivas, sociais e organizacionais e que priorizem abordagens coletivas e dialógicas. Em vez de ações meramente punitivas ou preventivas pautadas no medo e na culpabilização, Lima defende a criação de espaços institucionais que favoreçam o acolhimento, a escuta e o cuidado, reconhecendo o sofrimento psíquico como expressão legítima das tensões vividas no mundo do trabalho. Ao final, o texto contribui significativamente para o campo da saúde do trabalhador ao questionar o paradigma dominante nas práticas de enfrentamento do uso de substâncias, propondo um olhar mais ético, crítico e comprometido com a transformação das condições laborais. Com uma análise densa e embasada, o artigo evidencia que o uso de drogas no trabalho não pode ser dissociado do modo como o trabalho é organizado, vivido e sofrido, sendo urgente a construção de políticas integradas que articulem saúde mental, direitos trabalhistas e cidadania.
Referência:
LIMA, Maria Elizabeth Antunes. Dependência química e trabalho: uso funcional e disfuncional de drogas nos contextos laborais. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 35, n. 122, p. 224–233, dez. 2010.