A Medicalização Indevida da Ansiedade e da Adicção: Quando o Remédio Substitui o Cuidado
13/06/2025

Por Raique Almeida
Vivemos tempos em que o sofrimento psíquico tem sido cada vez mais diagnosticado como doença, e a resposta mais comum a ele tem sido o uso de medicamentos. Tristeza, medo, solidão, insônia, nervosismo, inquietação... sintomas subjetivos e humanos estão sendo rotulados como distúrbios e, muitas vezes, tratados com remédios sem a devida análise do contexto social, histórico e emocional da pessoa. Esse processo é conhecido como medicalização da vida — e tem causado sérias consequências, sobretudo nos casos de ansiedade e dependência química.
Segundo Illich (1975), a medicalização é o processo pelo qual problemas não médicos passam a ser definidos e tratados como questões médicas. No caso da ansiedade, por exemplo, em vez de escuta, acolhimento e compreensão das causas — que podem estar relacionadas à pobreza, ao racismo, ao excesso de trabalho, à violência ou à solidão — muitos profissionais oferecem como primeira (e, por vezes, única) resposta a prescrição de ansiolíticos e antidepressivos. E isso vale também para quem enfrenta o uso problemático de substâncias psicoativas.
O ciclo da medicação como silenciamento
Para muitas pessoas com transtornos relacionados à ansiedade ou à adição (dependência química), os psicotrópicos tornam-se uma espécie de anestesia social: não tratam a causa do sofrimento, mas apenas "acalmam" o corpo e a mente. E isso pode funcionar como um silenciamento institucionalizado.
Em vez de serem ouvidas e compreendidas, pessoas em sofrimento são medicadas e contidas. Como afirma a pesquisadora Maria Thereza Cunha (2012), “a medicalização, especialmente na área da saúde mental, muitas vezes oculta as dinâmicas sociais e culturais que estão na base do sofrimento psíquico, transformando tudo em patologia e comprimido”.
No caso da dependência química, isso se torna ainda mais grave. Pessoas que já lidam com o uso abusivo de substâncias como álcool ou drogas ilícitas são muitas vezes medicadas com novos psicotrópicos sem uma abordagem psicossocial adequada. Assim, ao invés de romper com o ciclo da dependência, a pessoa apenas migra de uma substância para outra — agora com a chancela institucional.
Ansiedade e adicção: sofrimentos que exigem escuta e cuidado integral
É preciso compreender que tanto a ansiedade quanto a adicção são experiências atravessadas por múltiplas dimensões: psicológica, emocional, social, espiritual. Ambas são formas de lidar com algo que a pessoa não consegue nomear, expressar ou resolver sozinha. Não há remédio que cure a dor do abandono, da exclusão, da falta de sentido.
Por isso, os tratamentos mais eficazes para esses quadros envolvem equipes interdisciplinares, escuta qualificada, apoio psicoterapêutico, estratégias de enfrentamento, cuidado com o corpo, vínculos sociais saudáveis e acesso a direitos fundamentais. A medicação pode ser importante — sim — em certos momentos e com acompanhamento adequado. Mas jamais deve ser a única ou a primeira resposta ao sofrimento.
Como destaca Paulo Amarante (2017), um dos principais nomes da Reforma Psiquiátrica brasileira, “a saúde mental não se faz apenas com remédios, mas com relações humanas, com redes de afeto, com oportunidades e com cidadania”.
O papel das clínicas terapêuticas na desmedicalização
As clínicas de recuperação terapêutica têm papel essencial nesse processo. É preciso romper com os modelos punitivos e medicalizantes, que apenas substituem uma dependência por outra. O acolhimento de pessoas em sofrimento deve ser feito com empatia, escuta e respeito à singularidade de cada história.
Clínicas que atuam com ética e responsabilidade oferecem muito mais do que contenção química: oferecem oportunidade de reconstrução, de resgate da autoestima, de reinserção social e de autonomia. Trabalham com terapias integrativas, grupos de apoio, práticas corporais, arte, espiritualidade e cuidado com a saúde mental, com ou sem o uso de medicamentos, conforme avaliação cuidadosa de cada caso.
Conclusão
A medicalização indevida da ansiedade e da adicção não resolve o sofrimento — apenas o mascara. Enfrentar esse fenômeno exige coragem, sensibilidade e compromisso com o cuidado integral. É preciso devolver às pessoas o direito de sentirem, de falarem, de se reconstruírem fora do silêncio dos comprimidos.
Se você ou alguém próximo enfrenta a ansiedade ou o uso abusivo de substâncias, saiba: há caminhos possíveis, com dignidade, respeito e cuidado humanizado. A vida pode ser reconstruída com apoio, acolhimento e liberdade.
Referências
- AMARANTE, Paulo. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.
- CUNHA, Maria Thereza. Medicalização da vida: uma crítica necessária. Revista Psicologia & Sociedade, v. 24, n. 1, 2012.
- ILLICH, Ivan. A Expropriação da Saúde: Nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
- WHO – World Health Organization. Mental health and substance use. WHO, 2021.