Sobre o cuidado de outros em contextos de pobreza, uso de drogas e marginalização

02/06/2025

Sobre o cuidado de outros em contextos de pobreza, uso de drogas e marginalização

Por Raique Almeida

            O artigo apresenta uma análise das práticas de cuidado direcionadas a adictos em comunidades empobrecidas da área metropolitana de Buenos Aires. A autora realiza uma etnografia em três bairros populares da cidade, buscando compreender como se configuram as formas de cuidado em territórios marcados por desigualdades sociais, precariedade de serviços públicos e circulação de substâncias psicoativas, com ênfase no consumo da Pasta Base de Cocaína (paco). Nesse contexto, Epele propõe uma abordagem ampliada do cuidado, que vai além das práticas institucionais formais e incorpora saberes, vínculos e estratégias produzidas no interior das redes familiares e comunitárias.

A autora parte das transformações sociais geradas pela crise econômico-política vivida na Argentina entre 2001 e 2002, que acentuou processos de empobrecimento e exclusão. Nesse cenário, o consumo de paco entre jovens de setores populares passou a ser identificado como um problema de saúde pública e segurança, gerando respostas emergenciais por parte do Estado, geralmente insuficientes ou desarticuladas das realidades locais. Diante da ausência de respostas estatais efetivas, as comunidades afetadas construíram modos próprios de lidar com os efeitos do consumo de drogas, especialmente com os impactos sobre os corpos, os afetos e os laços familiares. Epele observa que esses modos de cuidado operam em meio à precariedade e se sustentam na experiência acumulada dos familiares, sobretudo das mulheres, que assumem um papel central na proteção e manejo do sofrimento dos adictos.

No artigo, o cuidado é concebido como um conjunto de práticas que articulam dimensões corporais, subjetivas e relacionais. Trata-se de ações concretas que têm como objetivo manter a vida, controlar o sofrimento e responder às necessidades cotidianas dos adictos, mesmo sem contar com recursos institucionais adequados. As mães, avós, irmãs e vizinhas são figuras recorrentes nesse cuidado, muitas vezes recorrendo a estratégias baseadas na vigilância, na imposição de limites e na expressão de afeto. Tais práticas são marcadas por ambivalências, já que convivem com sentimento de frustração, medo e desesperança diante da deterioração física e emocional do adicto.

Epele enfatiza que essas práticas não devem ser vistas como improvisadas ou desorganizadas, mas como expressões de saberes locais que se constituem historicamente. Embora distintas das abordagens biomédicas e psicologizantes promovidas pelas instituições de saúde e assistência social, essas formas de cuidado são eficazes dentro de seus próprios parâmetros e revelam formas de resistência à desagregação social. Ao observar os sinais corporais do adicto como emagrecimento, insônia, feridas ou alterações de humor os cuidadores locais desenvolvem formas próprias de diagnóstico e intervenção, revelando uma lógica específica de atenção e controle.

O artigo também discute as tensões entre o cuidado informal, realizado pelas famílias, e as intervenções institucionais. Muitas vezes, os serviços públicos desconsideram ou desqualificam os saberes locais, impondo padrões de cuidado que não dialogam com a realidade dos territórios. Isso gera conflitos e limita a eficácia das políticas públicas. Em outros casos, contudo, observa-se uma incorporação seletiva de saberes institucionais pelas comunidades, que adaptam discursos e práticas às suas dinâmicas. Essa articulação entre diferentes formas de conhecimento e ação evidencia a complexidade do campo do cuidado em contextos de exclusão.

A partir dessa análise, Epele propõe que o cuidado seja compreendido como uma prática situada, marcada por disputas e negociações entre saberes diversos. A autora chama atenção para a necessidade de reconhecimento das práticas locais nas formulações de políticas públicas, valorizando os modos de cuidado que emergem nos espaços periféricos como legítimos e fundamentais. O artigo contribui para o debate sobre saúde, drogas e exclusão social ao deslocar o foco das instituições para os saberes e práticas cotidianas das famílias afetadas pelo uso de drogas.

Referência:

EPELE, María. Sobre o cuidado de outros em contextos de pobreza, uso de drogas e marginalização. Mana, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 247-268, ago. 2012.

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