Tráfico, Trauma e Transformação: A Adicção nas Letras de Sabotage
22/06/2025

Por Raique Almeida
O rap nacional sempre foi uma ferramenta poderosa de denúncia social, e poucas vozes traduziram tão bem as dores da periferia quanto Sabotage. Com uma trajetória marcada por sofrimento, vício e superação, ele não apenas cantou sobre a realidade das drogas, mas viveu intensamente os caminhos tortuosos da adicção. Nascido como Mauro Mateus dos Santos, Sabotage cresceu na Zona Sul de São Paulo e teve contato precoce com o mundo do crime e das drogas. Em suas músicas, como Um Bom Lugar, Rap é Compromisso e Na Zona Sul, ele narra com autenticidade o impacto das drogas em sua vida e em sua comunidade.
“Minha palavra alivia igual morfina, só que mais pura” (SABOTAGE, 2001) é uma frase que reflete uma das dimensões mais profundas da música de Sabotage: o rap como uma forma de alívio, cura e transformação. Ele não romantiza o uso de drogas, mas expõe a relação dolorosa e complexa com a adicção uma realidade que vai além do vício químico e se enraíza na exclusão social, na falta de oportunidades e no trauma coletivo das periferias brasileiras.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (2023), o uso abusivo de substâncias psicoativas está frequentemente ligado a fatores sociais, como pobreza, marginalização e histórico de violência. Sabotage representa esse elo. Seu envolvimento com drogas começou como uma tentativa de sobrevivência em um ambiente hostil, onde o tráfico era uma das únicas opções visíveis. As letras do artista funcionam como um espelho da realidade de muitos adictos que chegam às clínicas terapêuticas: homens e mulheres que, antes de tudo, são vítimas de um sistema que os empurra para as bordas.
Diversas pesquisas apontam a relação entre trauma psicológico e o uso de drogas como forma de escape (VAN DER KOLK, 2015). Nesse sentido, o rap de Sabotage pode ser lido como um grito terapêutico. Suas composições funcionam como uma espécie de catarse coletiva, onde ele externaliza sua dor e, ao mesmo tempo, oferece esperança. O próprio Sabotage, em vida, buscou reabilitação e chegou a abandonar o tráfico para se dedicar integralmente à música. Ele foi a prova de que, com apoio, arte e propósito, é possível ressignificar a dor.
Ao escutar Sabotage, profissionais da saúde mental e da reabilitação podem acessar, de forma empática, a vivência de muitos pacientes. Seu legado nos lembra que a adicção não define um indivíduo. Pelo contrário, cada adicto carrega uma história complexa, muitas vezes marcada por talento, sensibilidade e potência transformadora. Utilizar a arte seja na forma de música, escrita ou expressão corporal pode ser uma estratégia terapêutica eficaz no processo de recuperação. Sabotage nos ensina que há sempre espaço para a transformação, mesmo quando tudo parece perdido. “Rap é compromisso, não é viagem” e a reabilitação também.
Referências:
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório mundial sobre drogas e saúde mental. Genebra: OMS, 2023.
SABOTAGE. Rap é compromisso. Cosa Nostra Fonográfica, 2001. CD.
VAN DER KOLK, Bessel. O corpo guarda as marcas: cérebro, mente e corpo na cura do trauma. São Paulo: Zahar, 2015.