Adicção ao Álcool: Negação, Normalização Social e Desafios para o Reconhecimento e Tratamento
19/05/2025

Por Raique Almeida
A adicção ao álcool é um tema que suscita diversas dúvidas, tanto por parte das pessoas que enfrentam esse transtorno quanto de seus familiares. Um questionamento frequente refere-se à percepção que muitos indivíduos com transtorno por uso de álcool têm sobre si mesmos em comparação com outras pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas. É comum que esses indivíduos digam: “Eu, por acaso, sou como os outros adictos? Você já me viu usando drogas? Apenas tomo meu uísque, meu vinho. Não faço mal a ninguém. Isso não é ilegal. Eu compro em qualquer lugar.”
Esse tipo de justificativa é frequente entre pessoas com transtorno por uso de álcool e reflete, em grande parte, a forma como a sociedade encara o consumo dessa substância. O álcool é legal, amplamente aceito e, muitas vezes, socialmente incentivado. Por conta disso, cria-se um imaginário coletivo em que o consumo de álcool é considerado “normal” e até esperado, ao passo que o uso de outras drogas é marginalizado. Assim, o indivíduo que faz uso abusivo do álcool tende a se perceber como diferente e muitas vezes superior aos que fazem uso de substâncias como cocaína, maconha, heroína, anfetaminas, entre outras.
Um dos principais fatores que dificultam o reconhecimento da adicção é a ideia equivocada de que apenas quem consome álcool diariamente é considerado adicto. No entanto, a adicção não está restrita à frequência de uso. O transtorno por uso de álcool envolve aspectos físicos e psicológicos que comprometem a autonomia do indivíduo sobre seu consumo. A dificuldade em parar de beber uma vez que se inicia, a perda do controle sobre a quantidade ingerida e a interferência negativa em áreas importantes da vida como trabalho, relações familiares e saúde são indicadores relevantes do transtorno.
Outro fator que contribui para o negacionismo do adicto é a falsa sensação de controle. Muitos afirmam “Eu consigo parar quando quiser.” No entanto, em muitos casos, a interrupção do consumo ocorre apenas após uma intervenção externa seja por exigência da família, advertência no ambiente de trabalho ou outros fatores de pressão social. Quando a decisão de parar não parte da pessoa, mas sim de uma necessidade imposta, não se pode afirmar que ela possui total domínio sobre seu comportamento.
Vale destacar que o álcool é a única substância psicoativa em que é necessário justificar a ausência de consumo. Em eventos sociais, é comum ouvir questionamentos como “Por que você não está bebendo?” ou “Nem uma taça de vinho?”. Essa expectativa social de consumo reforça a dificuldade em reconhecer os problemas relacionados ao uso do álcool e, muitas vezes, contribui para sua banalização.
O desenvolvimento da adicção ocorre de forma progressiva, geralmente iniciando com o uso social, passando pelo abuso, até chegar ao transtorno propriamente dito. Com o tempo, o indivíduo pode começar a apresentar comportamentos de risco como agressividade, direção sob efeito do álcool, exposição a situações perigosas e a apresentar dificuldades para participar de eventos sociais sem o consumo da substância. Nessas situações, frequentemente é a família quem primeiro percebe as mudanças, parceiros que querem ir embora das festas antes que ocorra uma crise, filhos que comentam a quantidade de bebida ingerida, e outros sinais sutis que indicam preocupação com o comportamento do adicto.
Além dos fatores sociais e comportamentais, é importante considerar a influência de aspectos genéticos e psicológicos. Indivíduos com histórico familiar de alcoolismo têm maior vulnerabilidade ao desenvolvimento da adicção. Quando fatores como ansiedade, dificuldades de socialização e timidez estão presentes, e o álcool é utilizado como estratégia de enfrentamento, o risco de adicção aumenta significativamente.
Do ponto de vista clínico, o álcool apresenta características particulares entre as substâncias psicoativas. Uma delas é a chamada tolerância negativa ao contrário de drogas como cocaína ou maconha, em que o usuário precisa de doses cada vez maiores para alcançar o mesmo efeito, no caso do álcool o organismo passa a reagir com maior sensibilidade, levando à embriaguez com doses menores ao longo do tempo. Além disso, o álcool é uma das poucas substâncias cuja abstinência pode ser fatal. Os sintomas, como tremores, alucinações, náuseas e o chamado delirium tremens, podem exigir internação hospitalar, acompanhamento médico constante, suporte nutricional e farmacológico.
A atuação da família é fundamental no processo de reconhecimento e tratamento da adicção ao álcool. É imprescindível romper com a normalização do comportamento do adicto. Em contextos culturais latino-americanos, é comum que episódios de consumo abusivo sejam relativizados ou tratados com humor. Quando se questiona a existência de antecedentes familiares de adicção, muitos negam inicialmente, mas posteriormente mencionam pais ou parentes descritos como “bêbados”. Isso evidencia que a adicção, muitas vezes, é invisibilizada ou tratada com condescendência.
Para que o indivíduo reconheça a necessidade de tratamento, é necessário que o ambiente familiar estabeleça limites claros e firmes. A abordagem deve ser objetiva e baseada em consequências reais. Em vez de discutir ou pedir justificativas, é mais eficaz apresentar medidas concretas “Se você não buscar ajuda, não teremos mais convivência”, ou “Enquanto você não iniciar tratamento, nossos filhos não virão mais aqui.” Essa postura, embora difícil, é essencial para que a pessoa entenda que seu comportamento tem impacto e exige responsabilização.
A adicção ao álcool é uma condição crônica, complexa e que requer cuidados contínuos. Assim como doenças como diabetes ou hipertensão, ela demanda acompanhamento profissional, mudanças de estilo de vida e, em muitos casos, suporte psicossocial. O primeiro passo é o reconhecimento da doença tanto por parte do adicto quanto de sua rede de apoio. A partir disso, é possível iniciar um processo de tratamento e recuperação consistente.
Referências:
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