O Terceiro Passo do AA: Entrega, Confiança e Espiritualidade na Superação da Dependência Química
17/08/2025

Por Raique Almeida
O Terceiro Passo dos Doze Passos de Alcoólicos Anônimos (AA) propõe “Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, da maneira como nós O concebíamos” (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, 2001, p. 59). Esse movimento simboliza uma virada fundamental no processo de recuperação, pois desloca o indivíduo da autossuficiência ilusória para uma atitude de confiança em algo maior do que ele mesmo. Tal postura não implica necessariamente adesão a uma religião específica, mas sim a abertura para a espiritualidade e para o reconhecimento de que o caminho da sobriedade demanda humildade, confiança e entrega.
Segundo Vasconcelos (2005), a espiritualidade, no contexto da dependência química, constitui um fator protetivo capaz de auxiliar na reorganização subjetiva do indivíduo, promovendo ressignificação de sua trajetória de vida. Nesse sentido, o Terceiro Passo pode ser compreendido como uma dimensão de transcendência, que rompe com a centralidade do ego e permite ao adicto perceber-se como parte de uma realidade mais ampla. Essa entrega não se reduz à passividade, mas é um ato de coragem que envolve confiar no processo, no grupo e em si mesmo como sujeito em transformação.
A literatura especializada ressalta que muitos dependentes químicos chegam ao AA marcados pela desesperança e pelo sentimento de fracasso pessoal diante das recaídas. A proposta do Terceiro Passo surge, então, como um convite à rendição consciente, não ao vício, mas a uma força maior que pode conduzir à liberdade. Para Brandão (2011), tal atitude está ligada ao reconhecimento dos próprios limites e à aceitação de que a reconstrução da vida exige apoio e novas formas de lidar com a realidade. Assim, a entrega torna-se um gesto ativo de responsabilidade, que ressignifica a relação consigo mesmo, com os outros e com a espiritualidade.
Além disso, o Terceiro Passo articula-se intimamente com os dois anteriores, pois, após admitir a impotência diante do álcool (Primeiro Passo) e reconhecer a necessidade de uma força maior para restaurar a sanidade (Segundo Passo), o sujeito é convidado a tomar uma decisão prática confiar sua vida ao cuidado dessa força. Rogers (1997), ao discutir a Psicologia Humanista, afirma que a mudança pessoal só é possível quando o indivíduo se abre para a congruência e para relações de aceitação genuína. Nesse sentido, o Terceiro Passo não é apenas uma dimensão espiritual, mas também psicológica, já que exige a disposição para abandonar mecanismos de controle rígidos e para se permitir ser cuidado.
O processo de recuperação, portanto, envolve a reconstrução da confiança, tanto em si quanto em algo que transcenda a lógica individualista do ego. Para muitos membros do AA, esse passo simboliza o início de uma verdadeira libertação, na qual a espiritualidade torna-se não apenas um suporte moral, mas uma prática diária de confiança e entrega. Como observa Moreira (2013), a espiritualidade nos Doze Passos constitui-se como um espaço de pertencimento e de sentido existencial, favorecendo o fortalecimento da esperança e da resiliência frente aos desafios da sobriedade.
Conclui-se que o Terceiro Passo é um marco essencial no caminho do AA, pois representa a decisão consciente de confiar a vida a uma força maior, concebida de forma pessoal e plural. Essa entrega não significa abdicar da responsabilidade, mas assumir uma nova postura diante da existência a de reconhecer limites, aceitar ajuda e reconstruir a vida com base na espiritualidade, confiança e coragem. Dessa forma, o Terceiro Passo torna-se não apenas uma diretriz espiritual, mas também um recurso terapêutico e humano para a superação da dependência química.
Referências
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS. Os Doze Passos e as Doze Tradições. São Paulo: JUNAAB, 2001.
BRANDÃO, C. R. O que é espiritualidade. São Paulo: Brasiliense, 2011.
MOREIRA, A. L. Espiritualidade e sentido de vida no processo de recuperação da dependência química. Revista da Abordagem Gestáltica, v. 19, n. 1, p. 27-36, 2013.
ROGERS, C. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
VASCONCELOS, M. F. Espiritualidade na recuperação da dependência química: dimensões terapêuticas e comunitárias. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 27, n. 1, p. 50-55, 2005.