O Décimo Passo do Alcoólicos Anônimos: Autovigilância, Honestidade e Crescimento Contínuo
22/08/2025

Por Raique Almeida
O Décimo Passo dos Alcoólicos Anônimos (AA) afirma: “Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente” (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, 2001). Trata-se de uma etapa de manutenção da recuperação, na qual a prática da autocrítica constante se torna um hábito de vida. Se os passos anteriores permitiram ao dependente químico reconhecer sua impotência, confiar em uma força superior, reparar danos e reatar vínculos, o Décimo Passo marca o compromisso diário com a vigilância e a honestidade.
A prática desse passo pode ser entendida como um exercício contínuo de autorregulação. De acordo com Vaillant (2005), a recuperação de dependentes químicos não se restringe à abstinência, mas envolve a construção de novos padrões de comportamento e de consciência de si. O inventário pessoal, proposto no Décimo Passo, promove justamente essa autorreflexão permanente, permitindo ao sujeito perceber deslizes, reconhecer falhas e adotar atitudes corretivas antes que pequenas atitudes se transformem em recaídas.
Sob o prisma da psicologia humanista, Carl Rogers (1997) destaca a importância da congruência e da aceitação de si mesmo como bases para o desenvolvimento pessoal. A prática da autovigilância no Décimo Passo não é um exercício punitivo, mas um caminho para a autenticidade. Ao reconhecer erros de maneira imediata, o dependente evita a construção de máscaras ou defesas psicológicas, assumindo-se como ser humano falível, mas em crescimento constante.
Do ponto de vista espiritual, o Décimo Passo reforça a ideia de disciplina interior e responsabilidade diante da vida. Leonardo Boff (2000) argumenta que o cuidado, quando internalizado, torna-se um hábito existencial que organiza a relação consigo, com o outro e com o transcendente. Assim, o inventário pessoal diário pode ser entendido como uma prática de cuidado consigo mesmo, que se estende à comunidade e à espiritualidade.
Outro aspecto relevante do Décimo Passo é sua função preventiva. Marlatt e Gordon (1993), em seus estudos sobre recaídas, destacam que a consciência dos gatilhos internos e externos é fundamental para manter a sobriedade. O inventário diário atua como uma ferramenta preventiva, pois ajuda a identificar ressentimentos, irritações ou comportamentos de risco antes que eles se tornem fatores que favoreçam a recaída.
Portanto, o Décimo Passo não é apenas um procedimento espiritual ou moral, mas uma estratégia terapêutica de longo prazo. Ele estabelece uma prática de autovigilância e de honestidade contínua, sustentando a sobriedade e promovendo um crescimento pessoal baseado na humildade, no cuidado e na responsabilidade. Em síntese, trata-se de um passo que mantém viva a consciência da recuperação como processo e não como conquista definitiva.
Referências
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS. Os Doze Passos e as Doze Tradições. São Paulo: JUNAAB, 2001.
BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: Ética do humano – compaixão pela Terra. Petrópolis: Vozes, 2000.
MARLATT, G. Alan; GORDON, Judith R. Prevenção de recaída: estratégias de manutenção no tratamento de comportamentos aditivos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
ROGERS, Carl. Tornar-se Pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
VAILLANT, George. The Natural History of Alcoholism Revisited. Cambridge: Harvard University Press, 2005.