A Metamorfose e a Dependência Química: Uma Leitura Sobre Alienação e Desumanização
13/09/2025

Por Raique Almeida
A obra A Metamorfose (1915), de Franz Kafka, apresenta a história de Gregor Samsa, um homem que, de forma súbita, transforma-se em um inseto e passa a enfrentar as consequências dessa condição frente a sua família e ao mundo. O relato kafkiano, permeado de simbolismo, pode ser relacionado a diversas situações humanas de marginalização, exclusão e sofrimento psíquico, sendo a dependência química uma dessas possíveis interpretações. Ao analisar a metamorfose de Gregor, observa-se uma metáfora que dialoga com o processo vivenciado por pessoas que entram em contato com o vício e enfrentam a estigmatização social.
No enredo, o protagonista perde progressivamente sua dignidade, função social e vínculo afetivo, tornando-se um ser indesejado dentro de sua própria casa (KAFKA, 2017). Esse processo de desumanização encontra paralelo no percurso da dependência química, na qual o indivíduo, ao ser consumido pela substância, experimenta um processo de degradação pessoal e social. Segundo Fiore (2013), o adicto é frequentemente reduzido à sua condição de usuário, sendo-lhe negada a complexidade de sua existência. Assim como Gregor, a pessoa em dependência química é vista pelo estigma e pela aparência do vício, e não mais por sua subjetividade.
Outro aspecto de correlação é o isolamento. Gregor é afastado do convívio familiar e trancado em seu quarto, sendo tolerado apenas como um fardo. Do mesmo modo, a dependência química frequentemente conduz ao isolamento social, tanto por parte da família quanto da comunidade, que reproduzem atitudes de exclusão. Conforme argumenta Araújo e Moreira (2018), o estigma em torno da dependência química gera barreiras no processo de reinserção social, dificultando tanto a busca por tratamento quanto o acesso a políticas públicas de saúde.
A metamorfose kafkiana também evidencia a impotência do sujeito frente a uma transformação que não escolheu. Gregor não deseja ser um inseto, mas é lançado a essa realidade. Da mesma forma, muitas pessoas em dependência não planejam chegar à condição de adicção, mas vivenciam a perda de controle progressiva diante do uso de substâncias. Nesse sentido, o sofrimento psíquico, o sentimento de vergonha e a perda de autonomia revelam um processo de metamorfose existencial, em que o humano é substituído por uma identidade reduzida ao vício.
Além disso, o desfecho trágico da narrativa de Kafka aponta para a consequência da exclusão radical. Gregor, após ser abandonado e rejeitado, acaba por morrer em silêncio, representando o esgotamento da vida diante da ausência de acolhimento. Esse desfecho dialoga com a realidade de muitos dependentes químicos, que, sem acesso a tratamento adequado e apoio social, sucumbem ao sofrimento e, em muitos casos, à morte precoce. Como observa Boff (2002), a falta de cuidado e solidariedade compromete a própria condição humana, já que a vida só se realiza plenamente no encontro com o outro.
Portanto, a leitura de A Metamorfose sob a ótica da dependência química permite refletir sobre os mecanismos de exclusão e estigmatização que marcam a sociedade contemporânea. Assim como Gregor Samsa, o dependente químico passa por um processo de metamorfose simbólica, em que sua identidade é reduzida ao estigma, sua dignidade é corroída pela exclusão e sua existência é marcada pela invisibilidade social. A obra de Kafka, portanto, não apenas representa a alienação moderna, mas também possibilita um olhar crítico sobre os modos como a sociedade lida com aqueles que vivenciam a vulnerabilidade do vício, desafiando-nos a repensar práticas de cuidado e acolhimento.
Referências
ARAÚJO, R. B.; MOREIRA, F. G. Estigma, dependência química e reinserção social. Revista Psicologia e Saúde, v. 10, n. 2, p. 45-56, 2018.
BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
FIORE, M. O lugar do usuário de drogas na sociedade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 81, p. 165-176, 2013.
KAFKA, F. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.