O Oitavo Passo de Alcoólicos Anônimos: Reconciliação, Responsabilidade e Reconstrução de Vínculos
22/08/2025

Por Raique Almeida
O oitavo passo do programa de Alcoólicos Anônimos (AA) convida o dependente em recuperação a elaborar “uma lista de todas as pessoas que prejudicamos e a nos dispormos a reparar os danos a elas causados”. Trata-se de um dos momentos mais delicados e transformadores do processo, pois coloca em evidência não apenas a relação do indivíduo com sua própria história, mas também com aqueles que sofreram as consequências de sua adicção. Ao propor uma postura ativa de responsabilização, o passo transcende o campo da confissão e se orienta para a prática concreta da reparação, sendo um gesto ético, espiritual e profundamente terapêutico.
Segundo Viktor Frankl (2008), o ser humano só se realiza plenamente na medida em que se volta para além de si, encontrando sentido em algo ou em alguém que o transcenda. Essa perspectiva ilumina a essência do oitavo passo: ao reconhecer os danos causados e se dispor à reparação, o dependente rompe com o egocentrismo característico da adicção, passando a viver de modo mais responsável e comprometido com a alteridade. Nesse sentido, o passo não é apenas uma prática moral, mas também existencial, pois permite que a pessoa recupere seu lugar no mundo como sujeito de responsabilidade.
Carl Rogers (1997), ao refletir sobre o processo terapêutico, enfatiza a importância da congruência e da autenticidade no relacionamento humano. No contexto do AA, o oitavo passo exige justamente esse movimento de congruência: reconhecer os próprios erros sem se esconder atrás da negação ou da justificativa. A confecção da lista de pessoas prejudicadas é um exercício de verdade consigo mesmo e com os outros, funcionando como etapa essencial para a reconstrução da confiança e do respeito mútuo.
Além disso, Leonardo Boff (2002) destaca que a ética do cuidado é a base de qualquer convivência saudável. Ao reparar vínculos rompidos, o dependente em recuperação pratica essa ética, assumindo que o processo de cura não é individual, mas coletivo. A adicção frequentemente destrói laços familiares, amizades e relações profissionais, deixando rastros de dor e desconfiança. O oitavo passo se apresenta, então, como oportunidade de restaurar, ainda que parcialmente, os fios desgastados pelo vício, criando condições para que novas formas de convivência se estabeleçam.
Do ponto de vista psicológico, esse passo também favorece a redução da culpa e da vergonha, sentimentos que, segundo estudos em psicologia da adicção, alimentam recaídas quando não são devidamente trabalhados (MARLATT; DONOVAN, 2009). Ao transformar a culpa em responsabilidade e ação reparadora, o sujeito encontra novas bases para sustentar sua sobriedade. Trata-se de um processo de ressignificação, no qual a dor do passado é convertida em oportunidade de crescimento.
Em síntese, o oitavo passo de Alcoólicos Anônimos é mais do que um ato de reconhecimento: é um gesto de reconciliação que promove cura individual e social. Ao elaborar sua lista e se dispor à reparação, o dependente em recuperação reafirma seu compromisso com a vida, com a verdade e com o cuidado dos vínculos que lhe dão sentido. É nesse movimento de humildade e coragem que se concretiza a possibilidade de reconstrução, onde a fragilidade humana encontra espaço para se transformar em força e esperança.
Referências
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2002.
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
MARLATT, G. Alan; DONOVAN, Dennis M. Prevenção de recaída: estratégias de manutenção no tratamento da adicção. Porto Alegre: Artmed, 2009.
ROGERS, Carl. Tornar-se pessoa. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.