Cognir e Consumir: A Sociedade do Cansaço e a Normalização das Drogas

31/07/2025

Cognir e Consumir: A Sociedade do Cansaço e a Normalização das Drogas

Por Raique Almeida

            A contemporaneidade assiste ao entrelaçamento cada vez mais denso entre os atos de cognir e consumir, num contexto em que a produtividade mental se transforma em mercadoria. Byung-Chul Han descreve a transição de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do desempenho, na qual o sujeito não é mais coagido externamente, mas explora a si mesmo como capital humano. Essa auto exploração leva a um colapso do sujeito, que se transforma em um “empresário de si” esgotado. A exaustão mental, que Han nomeia como "violência neuronal", não se manifesta mais na forma da repressão, mas na forma da sobrecarga: “A sociedade do desempenho é uma sociedade da positividade. Ela não tem a negatividade da interdição, mas o excesso do ‘pode’” (HAN, 2017, p. 29).

            Nesse contexto, a cognição deixa de ser um processo natural e subjetivo para se tornar uma exigência contínua de foco, criatividade e produtividade. O uso de drogas psicoestimulantes como metilfenidato, anfetaminas e energéticos, assim como de ansiolíticos e antidepressivos, passa a ser encarado como uma estratégia legítima de otimização da mente.

            Segundo Michel Foucault (2008), vivemos sob um regime de biopolítica, onde os dispositivos de poder se voltam para o controle das populações por meio da regulação da vida. No neoliberalismo, a gestão do corpo e da mente se torna individualizada: é o próprio sujeito quem deve controlar suas emoções, modular sua atenção e manter sua produtividade, sob pena de fracasso social.

            Nesse cenário, o uso de drogas não aparece mais como desvio ou transgressão, mas como forma de se manter funcional. A medicalização da vida cotidiana, como analisa Peter Conrad (2007), transforma experiências humanas normais (como tristeza, ansiedade ou desatenção) em transtornos tratados quimicamente. Assim, as fronteiras entre tratamento, vício e performance tornam-se cada vez mais borradas.

            A lógica do capitalismo cognitivo, como discute Franco Berardi (2019), intensifica essa fusão entre cognição e consumo. A produção capitalista se desloca do campo material para o imaterial e a mente torna-se o principal meio de produção. Nesse contexto, consumir drogas para pensar mais rápido, dormir menos ou suportar a pressão se torna uma exigência silenciosa.

            Além disso, a indústria farmacêutica, aliada à cultura de alta performance, opera como agente ativo da normalização das substâncias. O que antes era considerado vício, hoje é reescrito como "melhoria cognitiva", especialmente em ambientes escolares e corporativos. A mente, para ser eficiente, deve ser modulada quimicamente.

            A sociedade contemporânea, ao naturalizar o uso de substâncias como meio de manter a produtividade e o equilíbrio emocional, revela uma nova forma de controle: o controle da cognição pelo consumo. Pensar, aprender e sentir tornam-se experiências atravessadas por substâncias. É preciso, portanto, resistir às lógicas que reduzem a mente humana a um dispositivo de performance e o corpo a uma máquina a ser aperfeiçoada.

            A crítica ao uso normalizado das drogas não deve ser moralista, mas ética e política: questionar que subjetividades estamos construindo e qual o custo humano do cansaço que fingimos não ver.

 

Referências

BERARDI, Franco (Bifo). Depois do Futuro. São Paulo: Ubu, 2019.

CONRAD, Peter. The Medicalization of Society. Johns Hopkins University Press, 2007.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

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