O Décimo Passo em Narcóticos Anônimos
03/09/2025

Por Raique Almeida
O processo de recuperação em Narcóticos Anônimos (NA) é estruturado em doze passos que visam promover a abstinência contínua, o autoconhecimento e a transformação pessoal. O décimo passo, que propõe a prática do inventário pessoal diário e a admissão imediata de erros, é considerado fundamental para a manutenção da sobriedade, pois permite ao indivíduo um constante exercício de vigilância sobre suas atitudes, pensamentos e comportamentos (NARCÓTICOS ANÔNIMOS, 2018). Essa prática, longe de ser apenas uma reflexão ocasional, torna-se um hábito que fortalece a responsabilidade pessoal e previne recaídas.
Segundo Rogers (1997), o processo de crescimento humano está intimamente relacionado com a capacidade de reconhecer falhas e assumir uma postura de abertura à experiência. Essa perspectiva se alinha à proposta do décimo passo, que incentiva o adicto em recuperação a abandonar a rigidez de antigas defesas e enfrentar, de forma honesta, as consequências de suas ações. Ao admitir erros prontamente, o indivíduo evita que a culpa e o ressentimento se acumulem, sentimentos esses que podem funcionar como gatilhos para o retorno ao uso de substâncias.
Além disso, o décimo passo estimula a prática da humildade, compreendida não como submissão, mas como a consciência de que a imperfeição é parte da condição humana. Boff (2001) destaca que a humildade é uma virtude que abre espaço para a espiritualidade e para a convivência solidária, aspectos essenciais no processo de recuperação. Nesse sentido, o inventário diário funciona como uma espécie de exame de consciência contínuo, que favorece não apenas a abstinência, mas também o desenvolvimento ético e espiritual do indivíduo.
Do ponto de vista psicológico, o hábito de revisar as próprias ações permite que o sujeito fortaleça recursos internos de autorregulação. A neurociência tem demonstrado que a prática de autorreflexão está associada ao fortalecimento de circuitos cerebrais ligados ao controle inibitório e à tomada de decisões (DAMÁSIO, 2011). Portanto, ao praticar o décimo passo, o membro de Narcóticos Anônimos não apenas reforça seu compromisso moral, mas também promove mudanças neurológicas que sustentam a sobriedade a longo prazo.
Outro aspecto importante é que o décimo passo não se limita ao reconhecimento de erros individuais, mas envolve também a reparação imediata quando possível. Essa atitude promove a restauração de vínculos sociais, frequentemente fragilizados durante o período de uso ativo. Como destaca Matos (2014), a recuperação não é um processo solitário, mas uma reconstrução que envolve a reinserção social e o resgate de laços afetivos. Assim, a prática cotidiana desse passo contribui para que o adicto se torne mais consciente do impacto de suas ações sobre o outro, fortalecendo sua responsabilidade social.
Portanto, o décimo passo representa mais que uma técnica de autocontrole trata-se de um exercício de honestidade contínua, humildade e responsabilidade. Ele promove um equilíbrio entre a dimensão individual e a coletiva, ao mesmo tempo em que fortalece a consciência espiritual. Através dele, os participantes do programa aprendem que a recuperação não é um estado alcançado de forma definitiva, mas um processo dinâmico, sustentado pelo compromisso diário de reconhecer limitações e buscar o crescimento pessoal. Assim, o décimo passo consolida-se como um pilar na manutenção da sobriedade e na construção de uma vida significativa em abstinência.
Referências
BOFF, Leonardo. Virtudes para um outro mundo possível: Hospitalidade, reverência, compaixão, cuidado e ternura. Petrópolis: Vozes, 2001.
DAMÁSIO, António. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
MATOS, Maria da Penha de Lima Coutinho. Dependência química: interfaces e perspectivas. João Pessoa: UFPB, 2014.
NARCÓTICOS ANÔNIMOS. Texto Básico. 6. ed. Rio de Janeiro: JUNAAB, 2018.
ROGERS, Carl. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.