O Paradoxo do Vício Nos Jogos da Lotofácil e a Contradição Estatal no Brasil
31/08/2025

Por Raique Almeida
O vício em jogos de azar constitui um fenômeno de caráter silencioso e devastador, afetando diretamente a vida social, econômica e psicológica de milhares de indivíduos. No Brasil, observa-se uma contradição que se estabelece entre a proibição legal dos jogos de azar e a própria exploração governamental desse segmento por meio de loterias oficiais, como a Lotofácil. Essa realidade levanta debates sobre a legitimidade da atuação estatal e o impacto desse tipo de prática na formação de dependências comportamentais.
A legislação brasileira, por meio do Decreto-Lei nº 9.215/1946, proíbe os jogos de azar no país, sob a justificativa de que tais práticas estimulam vícios, comprometem a ordem pública e geram riscos sociais (BRASIL, 1946). No entanto, o mesmo Estado que restringe cassinos, bingos e apostas privadas, promove e incentiva as loterias federais, sob a alegação de que os recursos arrecadados são revertidos para áreas sociais, como saúde, educação e segurança pública. Essa contradição revela um duplo padrão jurídico e ético, no qual o governo, ao mesmo tempo que condena práticas de apostas privadas, lucra com os jogos oficiais.
A Lotofácil, em particular, se tornou um dos jogos mais populares no Brasil, justamente pela promessa de ganhos rápidos e pela aparente simplicidade das apostas. Essa acessibilidade, entretanto, potencializa o risco de dependência, já que o apostador tende a acreditar que o retorno financeiro é possível com maior facilidade. De acordo com Martins (2019), a propaganda estatal que estimula a participação em loterias gera uma espécie de “ilusão de mobilidade social”, na qual os indivíduos, sobretudo das classes mais baixas, veem no jogo uma alternativa de ascensão econômica.
Esse cenário leva ao questionamento ético da atuação estatal como pode o governo proibir determinadas formas de jogos de azar e, simultaneamente, explorar economicamente outras modalidades? Segundo Oliveira (2021), essa prática representa uma “hipocrisia institucional”, na medida em que o Estado assume o papel de agente regulador e, ao mesmo tempo, de explorador da vulnerabilidade dos cidadãos. Essa contradição é ainda mais preocupante quando se observa o crescente número de apostadores compulsivos, que, iludidos pela esperança de enriquecimento rápido, acabam desenvolvendo comportamentos patológicos semelhantes ao vício em drogas.
Estudos recentes têm apontado que o vício em jogos, classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2018) como transtorno do jogo, apresenta sintomas que envolvem perda de controle, prejuízos financeiros significativos, deterioração dos vínculos sociais e sofrimento psíquico. Nesse sentido, a Lotofácil e outras modalidades de loteria governamental não se diferenciam estruturalmente dos jogos proibidos, já que igualmente estimulam a dependência e a irracionalidade da aposta repetida.
Portanto, a discussão sobre a Lotofácil e os demais jogos oficiais precisa ultrapassar a dimensão meramente econômica, para alcançar o campo da ética e da saúde pública. Se, por um lado, a arrecadação proveniente dessas apostas contribui para políticas sociais, por outro, ela se sustenta sobre a fragilidade e a vulnerabilidade de milhões de brasileiros que, em busca de melhores condições de vida, acabam presos em um ciclo de exploração estatal. Como alerta Souza (2020), “não há justificativa moral para que o Estado lucre com práticas que, em outras circunstâncias, seriam criminalizadas”.
Assim, é urgente a construção de um debate público que revele essa contradição, visando tanto a conscientização da sociedade quanto a elaboração de políticas que enfrentem o vício em jogos de forma responsável. Reconhecer o paradoxo entre proibição e exploração governamental dos jogos de azar é um passo fundamental para repensar a função social das loterias e as consequências do vício que delas decorrem.
Referências
BRASIL. Decreto-Lei nº 9.215, de 30 de abril de 1946. Proíbe a prática ou exploração de jogos de azar em todo o território nacional. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 1946.
MARTINS, C. R. A ilusão da sorte: loterias e desigualdade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2019.
OLIVEIRA, F. C. Estado e contradição: jogos de azar e loterias oficiais no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Classificação Internacional de Doenças (CID-11). Genebra: OMS, 2018.
SOUZA, L. M. O vício em jogos e a responsabilidade estatal. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 10, n. 2, p. 233-248, 2020.