O Primeiro Passo dos Narcóticos Anônimos: Reconhecimento da Impotência e Início da Recuperação

Por Raique Almeida

            O processo de recuperação em Narcóticos Anônimos (NA) fundamenta-se em doze passos espirituais e práticos que auxiliam indivíduos em sofrimento decorrente da dependência química. O Primeiro Passo, enunciado como “Admitimos que éramos impotentes perante a nossa adicção, que nossas vidas tinham se tornado incontroláveis” (NARCÓTICOS ANÔNIMOS, 2008), constitui o ponto de partida para a transformação do sujeito, pois implica em um reconhecimento radical da própria condição de vulnerabilidade.

            A literatura aponta que a dependência química é uma doença multifatorial, marcada por componentes biológicos, psicológicos e sociais (FIGLIE; BORDIN; LARANJEIRA, 2017). Nesse contexto, o Primeiro Passo rompe com a negação, um dos principais mecanismos de defesa utilizados pelo adicto, permitindo-lhe reconhecer que não possui controle sobre o uso da substância. Essa admissão não é um ato de fraqueza, mas de honestidade e autoconhecimento, considerados fundamentais para o início do processo terapêutico (SILVEIRA; MOREIRA, 2019).

            Carl Rogers (1997), ao discutir a abordagem centrada na pessoa, destaca a importância da autenticidade e da aceitação incondicional como caminhos para a mudança. Nesse sentido, admitir a impotência perante a droga pode ser compreendido como um ato de congruência, em que o sujeito abandona a fachada de controle e se abre à possibilidade de transformação. Assim, o Primeiro Passo cria as bases para a construção de uma nova identidade, em que o indivíduo reconhece seus limites e passa a buscar apoio em uma comunidade de iguais.

            Além disso, o reconhecimento da própria impotência relaciona-se à espiritualidade presente no programa. Embora não esteja vinculada a uma religião específica, a espiritualidade em NA é compreendida como um recurso que fortalece a esperança e a ressignificação do sofrimento (MORAES; OLIVEIRA, 2020). O Primeiro Passo, portanto, transcende uma simples aceitação racional, configurando-se como experiência existencial que abre caminho para os demais passos.

            O impacto do Primeiro Passo também pode ser compreendido à luz da psicodinâmica da adicção. De acordo com Khantzian (1997), a droga muitas vezes é utilizada como um mecanismo de autorregulação emocional, preenchendo lacunas afetivas e psicológicas. Nesse sentido, admitir a impotência é reconhecer que tal recurso não apenas falhou, como também trouxe destruição e perda de controle. Esse movimento de entrega possibilita uma reconstrução subjetiva e social, já que o programa de NA incentiva o apoio mútuo e a criação de novos vínculos de pertencimento (NARCÓTICOS ANÔNIMOS, 2008).

            Portanto, o Primeiro Passo dos Narcóticos Anônimos representa mais do que uma etapa inicial: é um marco de ruptura com a negação e a ilusão de controle, abrindo espaço para a consciência, a espiritualidade e o apoio coletivo. Sem esse reconhecimento, dificilmente o indivíduo conseguirá se engajar no processo de recuperação, já que o fundamento da mudança é admitir a própria incapacidade de lidar sozinho com a dependência.

Referências

FIGLIE, N.; BORDIN, S.; LARANJEIRA, R. Aconselhamento em dependência química. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.

KHANTZIAN, E. J. The self-medication hypothesis of substance use disorders: A reconsideration and recent applications. Harvard Review of Psychiatry, v. 4, n. 5, p. 231-244, 1997.

MORAES, J. P.; OLIVEIRA, M. A. Espiritualidade e dependência química: contribuições para o processo de recuperação. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 73, n. 2, p. 1-8, 2020.

NARCÓTICOS ANÔNIMOS. Texto Básico. 6. ed. Rio de Janeiro: JUNAAB, 2008.

ROGERS, C. R. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

SILVEIRA, P. S.; MOREIRA, F. G. A negação como obstáculo na recuperação da dependência química. Revista Psicologia e Saúde, v. 11, n. 1, p. 45-57, 2019.