O Quarto Passo em Narcóticos Anônimos: Autoconhecimento e Enfrentamento das Sombras
26/08/2025

Por Raique Almeida
O Quarto Passo de Narcóticos Anônimos afirma: “Fizemos um profundo e destemido inventário moral de nós mesmos” (NA, 2008, p. 29). Esse passo representa um dos momentos mais desafiadores do programa de recuperação, pois convida o dependente químico a olhar para dentro de si com honestidade, reconhecendo falhas, ressentimentos, medos e padrões de comportamento que alimentaram a doença da adicção.
Segundo Woititz (2013), o processo de autoinventário é essencial para a reestruturação emocional do indivíduo em recuperação, visto que muitos dependentes carregam culpas, traumas e mecanismos de defesa que precisam ser trabalhados de forma consciente. O Quarto Passo, portanto, não se limita à confissão de erros, mas constitui uma metodologia prática de autoconhecimento, promovendo clareza sobre as raízes emocionais do comportamento aditivo.
A psicologia humanista de Carl Rogers (2001) reforça a importância da congruência e da aceitação incondicional como fundamentos para a mudança pessoal. Nesse sentido, ao realizar um inventário moral, o membro de NA entra em contato com sua autenticidade, reconhecendo fragilidades sem julgamentos excessivos. Esse exercício promove a autoaceitação e abre espaço para a transformação, o que se mostra fundamental no enfrentamento do vício.
Do ponto de vista da espiritualidade, o Quarto Passo é compreendido como uma prática de coragem, pois exige que o indivíduo ilumine aspectos de sua vida que antes eram negados ou reprimidos (Kurtz, 1991). Esse movimento está alinhado com o princípio de que não há recuperação sem enfrentamento da verdade interior. O inventário destemido é, portanto, um antídoto contra a negação — mecanismo psicológico recorrente em pessoas com dependência química.
Além disso, pesquisas apontam que programas de mútua ajuda que incorporam práticas reflexivas, como o Quarto Passo, contribuem para a redução de recaídas, fortalecimento da autoestima e ampliação da resiliência (Galanter, 2014). Ao organizar suas experiências de forma escrita e consciente, o dependente constrói uma narrativa de si mesmo mais coerente, o que o ajuda a lidar com as consequências de seu passado sem sucumbir à autodestruição.
Assim, o Quarto Passo em Narcóticos Anônimos é um convite à honestidade radical e ao autoconhecimento profundo. Ele rompe com a lógica da fuga e do esquecimento, características centrais da adicção, e inaugura um caminho de responsabilidade pessoal e crescimento espiritual. Por meio do inventário moral, o dependente deixa de ser prisioneiro de suas sombras e encontra, na verdade interior, a possibilidade concreta de cura e reconstrução de sua vida.
Referências
GALANTER, Marc. Mutual help organizations: Research on their efficacy for addiction. American Journal on Addictions, v. 23, n. 3, p. 206-212, 2014.
KURTZ, Ernest. Not-God: A History of Alcoholics Anonymous. Minnesota: Hazelden, 1991.
NARCÓTICOS ANÔNIMOS. Texto Básico. 6. ed. Rio de Janeiro: JUNAAB, 2008.
ROGERS, Carl. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
WOITITZ, Janet. Adult Children of Alcoholics. Deerfield Beach: Health Communications, 2013.