O Segundo Passo dos Narcóticos Anônimos: Abertura à Esperança e Reconstrução do Sentido
26/08/2025

Por Raique Almeida
O processo de recuperação em Narcóticos Anônimos (NA) estrutura-se em doze passos que orientam o adicto em direção a uma vida de sobriedade e reestruturação pessoal. O Segundo Passo, formulado como “Viemos a acreditar que um Poder maior do que nós poderíamos devolver-nos à sanidade” (NARCÓTICOS ANÔNIMOS, 2008), representa a abertura para a possibilidade de transformação por meio da espiritualidade, da confiança e da esperança.
Enquanto o Primeiro Passo implica a admissão da impotência diante da adicção, o Segundo Passo marca a transição da desesperança para a crença na recuperação. Segundo Vaillant (2005), a fé, entendida como confiança em algo maior que o próprio indivíduo, constitui fator protetor fundamental contra recaídas, uma vez que oferece sentido e propósito à experiência humana. Nesse contexto, a espiritualidade em NA não se limita à religião, mas amplia-se a uma concepção de conexão, pertencimento e transcendência (MORAES; OLIVEIRA, 2020).
Do ponto de vista psicológico, a abertura a um “Poder Superior” favorece o rompimento do isolamento e da onipotência, característicos do comportamento aditivo. Rogers (1997) já indicava que a mudança pessoal se torna possível quando o indivíduo reconhece sua vulnerabilidade e se abre à experiência. O Segundo Passo, assim, pode ser interpretado como um convite à humildade e à confiança em algo externo que rompe o ciclo da autossuficiência ilusória do adicto.
Sob a perspectiva da saúde mental, o termo “sanidade” mencionado no passo remete não apenas à ausência de transtornos, mas à recuperação da capacidade de viver de forma equilibrada, responsável e conectada com a realidade. Estudos de Khantzian (1997) apontam que o uso compulsivo de drogas frequentemente funciona como tentativa de autorregulação emocional, mas leva à perda de sentido e controle. O Segundo Passo, nesse sentido, representa a construção de uma nova lógica de enfrentamento, alicerçada em vínculos sociais e na esperança compartilhada em grupo.
A dimensão comunitária desse passo também é central. O grupo de NA funciona como mediador do “Poder Superior”, oferecendo testemunhos vivos de que a mudança é possível. Segundo Oliveira e Silva (2016), o contato com pares em recuperação atua como um espelho transformador, no qual o indivíduo encontra motivação para acreditar na própria capacidade de reconstrução. Assim, o Segundo Passo opera como ponte entre o reconhecimento da impotência (Primeiro Passo) e a ação prática de entrega e confiança que se desenvolverá nos passos subsequentes.
Portanto, o Segundo Passo de Narcóticos Anônimos não se limita a uma crença abstrata, mas expressa uma mudança de atitude frente à vida: o abandono da desesperança e a abertura a novas possibilidades de sentido, sustentadas pela espiritualidade, pela comunidade e pela fé na transformação.
Referências
KHANTZIAN, E. J. The self-medication hypothesis of substance use disorders: A reconsideration and recent applications. Harvard Review of Psychiatry, v. 4, n. 5, p. 231-244, 1997.
MORAES, J. P.; OLIVEIRA, M. A. Espiritualidade e dependência química: contribuições para o processo de recuperação. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 73, n. 2, p. 1-8, 2020.
NARCÓTICOS ANÔNIMOS. Texto Básico. 6. ed. Rio de Janeiro: JUNAAB, 2008.
OLIVEIRA, L. F.; SILVA, P. R. Grupos de ajuda mútua e recuperação em dependência química: uma análise psicossocial. Revista Psicologia e Saúde, v. 8, n. 1, p. 67-78, 2016.
ROGERS, C. R. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
VAILLANT, G. A ciência da felicidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.