O Terceiro Passo em Narcóticos Anônimos: Entrega e Espiritualidade no Processo de Recuperação
26/08/2025

Por Raique Almeida
O Terceiro Passo dos Narcóticos Anônimos (NA) afirma: “Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, da maneira como nós O compreendíamos” (NA, 2008, p. 24). Este passo representa um marco fundamental no processo de recuperação, pois introduz a dimensão da entrega, confiança e espiritualidade como pilares da reconstrução da vida do adicto.
De acordo com Kellen (2014), a dependência química é marcada por padrões de controle e compulsividade que aprisionam o indivíduo em um ciclo de uso e recaída. Nesse sentido, o Terceiro Passo sugere um movimento contrário: ao invés da busca incessante pelo controle da vida e das substâncias, o dependente é convidado a abrir mão da onipotência e reconhecer a necessidade de apoio espiritual e comunitário.
A literatura especializada evidencia que a espiritualidade, ainda que desvinculada de uma religião específica, é um recurso terapêutico importante no processo de recuperação (Pargament, 2011). Em Narcóticos Anônimos, a noção de “Deus, da maneira como nós O compreendíamos” permite que cada membro construa sua própria compreensão de um poder superior, evitando imposições dogmáticas e favorecendo a inclusão. Essa abertura amplia o sentido de pertencimento e fortalece a prática de rendição como um ato de humildade e crescimento interior.
Segundo Rogers (2001), a mudança pessoal acontece quando o indivíduo consegue aceitar-se em sua condição de vulnerabilidade. Essa aceitação encontra ressonância no Terceiro Passo, já que a entrega da vontade não implica passividade, mas sim um reposicionamento existencial: o adicto deixa de ser o centro controlador de sua vida para reconhecer sua limitação e a necessidade de confiar em algo maior. Desse modo, a espiritualidade proposta no NA não se trata de uma fuga, mas de uma abertura à transformação.
Além disso, estudos de Galanter (2014) demonstram que a participação em grupos de mútua ajuda, como NA, reforça valores comunitários e espirituais que auxiliam no fortalecimento da resiliência, da coesão social e da abstinência. O Terceiro Passo, ao propor a entrega, fortalece essa dimensão coletiva, visto que a confiança em um poder superior também se reflete na confiança no grupo como espaço terapêutico e de apoio.
Portanto, o Terceiro Passo dos Narcóticos Anônimos é mais do que uma prática de fé: constitui-se em uma estratégia de ressignificação da vida do dependente químico. Ele promove a superação da ilusão de controle absoluto, favorece o reconhecimento das fragilidades humanas e possibilita a abertura para novas formas de cuidado. A entrega da vontade, nesse contexto, não é sinônimo de fraqueza, mas sim de fortalecimento e amadurecimento, permitindo ao adicto reconstruir sua existência a partir da espiritualidade, da comunidade e da confiança no processo de recuperação.
Referências
GALANTER, Marc. Mutual help organizations: Research on their efficacy for addiction. American Journal on Addictions, v. 23, n. 3, p. 206-212, 2014.
KELLEN, Vânia. Dependência química: compulsão e perda de controle. Porto Alegre: Artes Médicas, 2014.
NARCÓTICOS ANÔNIMOS. Texto Básico. 6. ed. Rio de Janeiro: JUNAAB, 2008.
PARGAMENT, Kenneth. Spiritually integrated psychotherapy: Understanding and addressing the sacred. New York: Guilford Press, 2011.
ROGERS, Carl. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.