O Uso de Drogas em Contextos de Guerra: Dor, Fuga Psicológica e a Construção da Dependência
11/07/2025

Por Raique Almeida
Um aspecto historicamente negligenciado nas discussões sobre guerras é a relação entre o uso de substâncias psicoativas e os soldados em combate. O ambiente extremo do campo de batalha, marcado pela dor física e emocional, favoreceu o uso recorrente de drogas como forma de alívio. Durante a Guerra Civil Americana, estima-se que cerca de 400 mil soldados se tornaram dependentes de morfina, substância isolada em 1804 e difundida por sua potente ação analgésica (Courtwright, 2001).
Com a intensificação dos conflitos na Primeira Guerra Mundial, a morfina passou a ser amplamente administrada nas linhas de frente, inclusive por meio de seringas hipodérmicas descartáveis com dose única, projetadas para uso rápido e eficiente. Contudo, seu uso excessivo e pouco regulado resultou em altos índices de dependência, realidade que se manteve mesmo décadas após o término da guerra. Segundo Grinspoon e Bakalar (1976), os médicos da época desconheciam o potencial viciante da substância, administrando-a com frequência como única solução eficaz para aliviar o sofrimento dos feridos.
Além da morfina, outras drogas como a cocaína também foram popularizadas. Antes de sua criminalização, ela era amplamente usada em medicamentos e tônicos, sendo considerada tão segura quanto o tabaco. Durante a Primeira Guerra, no entanto, iniciou-se um pânico moral especialmente na Grã-Bretanha motivado pelo receio de que a cocaína enfraquecesse os soldados. Uma ordem militar em 1916 passou a proibir a venda de drogas como cocaína, ópio e heroína aos militares, exceto sob prescrição médica (Berridge, 1999).
Na Segunda Guerra Mundial, novas substâncias ganharam espaço. A metanfetamina, por exemplo, foi amplamente utilizada por pilotos e operadores de tanques, com o objetivo de manter o estado de alerta. O álcool, após o fim da Lei Seca nos Estados Unidos, tornou-se parte do cotidiano nas bases militares (Lindesmith, 1965). Já durante a Guerra do Vietnã, o uso de drogas alcançou níveis alarmantes. Soldados, diante do tédio, medo e desilusão, recorreram ao uso de maconha, heroína e psicodélicos, sendo que cerca de 20% relataram dependência em heroína ao deixarem o Vietnã (Robins 1975).
Observa-se, portanto, que o uso de substâncias durante as guerras não apenas serviu como uma tentativa de fuga da realidade brutal do combate, mas também criou um legado duradouro de dependência. Muitos veteranos não buscaram ajuda médica por receio do estigma associado ao sofrimento psíquico, perpetuando o ciclo de dor silenciosa. Conforme destaca Goffman (1963), a percepção de fraqueza associada ao tratamento psicológico em contextos militares ainda é um obstáculo significativo à reabilitação.
Assim, torna-se fundamental compreender o uso de drogas em contextos de guerra não apenas como um fenômeno individual, mas como uma consequência estrutural dos horrores vividos no front. As guerras, ao mesmo tempo que produzem ferimentos físicos, deixam marcas invisíveis que exigem atenção contínua da sociedade e das políticas públicas voltadas à saúde mental dos veteranos.
Referências:
BERRIDGE, V. Ópio e o Povo: O Uso de Opiáceos na Inglaterra do Século XIX. New Haven: Yale University Press, 1999.
COURTWRIGHT, D. T. Forças do Hábito: As Drogas e a Construção do Mundo Moderno. Cambridge: Harvard University Press, 2001.
GOFFMAN, E. Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1963.
GRINSPOON, L.; BAKALAR, J. B. Cocaína: A Evolução Social de uma Droga. New York: Basic Books, 1976.
LINDESMITH, A. R. O Viciado e a Lei. Bloomington: Indiana University Press, 1965.
ROBINS, L. N. et al. Uso de Drogas por Soldados Americanos no Vietnã: Um Acompanhamento Após o Retorno ao País. Revista Americana de Epidemiologia, v. 99, n. 4, p. 235–249, 1975.