O Vício Silencioso do Jogo do Bicho
31/08/2025

Por Raique Almeida
O jogo do bicho, prática de aposta ilegal criada no Brasil no final do século XIX, ainda persiste como um fenômeno social enraizado, atravessando gerações e se consolidando como uma forma de entretenimento popular, mas também como fonte de vício silencioso. Sua característica de fácil acesso, baixo custo inicial e proximidade com comunidades de baixa renda torna-o um hábito que, à primeira vista, parece inofensivo, mas que pode desencadear graves consequências psicológicas, financeiras e sociais. Segundo Tavares (2005), os jogos de azar, mesmo aqueles de menor visibilidade, como o jogo do bicho, produzem efeitos semelhantes aos observados em outras formas de dependência, mobilizando os mesmos circuitos de recompensa no cérebro, responsáveis pela sensação de prazer imediato.
A dependência do jogo caracteriza-se pela perda progressiva do controle sobre os impulsos, levando o indivíduo a apostar cada vez mais, mesmo diante de prejuízos financeiros significativos. Essa compulsão, de acordo com Rohde. (2006), pode ser comparada a outros transtornos de comportamento aditivo, nos quais há o predomínio do imediatismo e da busca incessante por reforço positivo. No caso do jogo do bicho, o reforço está associado à expectativa de ganhos rápidos e à ilusão de uma solução imediata para dificuldades econômicas, realidade bastante presente em comunidades marcadas pela vulnerabilidade social.
O vício silencioso do jogo do bicho manifesta-se, sobretudo, na invisibilidade de seus danos. Diferentemente de substâncias químicas, que apresentam efeitos perceptíveis no corpo, a compulsão por apostas muitas vezes não é identificada por familiares e amigos até que as consequências se tornem devastadoras. Estudos indicam que o jogo compulsivo está associado a elevados índices de endividamento, rupturas familiares e sintomas depressivos, podendo, em casos extremos, levar a comportamentos suicidas (Lobo; Tavares, 2006). O caráter clandestino do jogo do bicho, aliado à sua naturalização cultural, dificulta ainda mais a criação de políticas públicas eficazes de prevenção e tratamento.
Embora seja considerado contravenção penal no Brasil, o jogo do bicho resiste pela forte aceitação social e pela rede de proteção que o sustenta, incluindo desde pequenos vendedores de apostas até grupos organizados com grande poder econômico. Essa contradição evidencia, como aponta Vargas (2015), a coexistência entre a repressão legal e a tolerância social, criando um espaço onde o vício se perpetua sem grandes questionamentos. A ausência de campanhas educativas e a falta de reconhecimento do jogo compulsivo como problema de saúde pública agravam o quadro, deixando os jogadores sem suporte institucional adequado.
Portanto, o jogo do bicho configura-se como um vício silencioso que ultrapassa as barreiras da ilegalidade e da cultura popular, atingindo diretamente a saúde mental e a estabilidade social dos indivíduos. É urgente que se reconheça o jogo compulsivo como transtorno passível de intervenção clínica e política, ampliando o debate sobre formas de prevenção e tratamento. Mais do que uma contravenção, trata-se de um problema de saúde coletiva que, pela sua invisibilidade, merece atenção especial tanto do campo acadêmico quanto das políticas públicas.
Referências
LOBO, Daniel S. S.; TAVARES, Hermano. Comorbidades psiquiátricas no jogo patológico: um estudo descritivo em uma amostra clínica brasileira. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 28, n. 1, p. 50-53, 2006.
ROHDE, Luis A. Transtornos de déficit de atenção/hiperatividade e jogo patológico: uma revisão da literatura. Revista de Psiquiatria Clínica, v. 33, n. 5, p. 262-267, 2006.
TAVARES, Hermano. Transtornos do controle dos impulsos: jogo patológico e outros comportamentos aditivos. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 27, supl. 1, p. S34-S38, 2005.
VARGAS, João. O jogo do bicho e a cultura popular: uma leitura sociológica. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 30, n. 89, p. 123-140, 2015.