Classe Média e Uso de Drogas: Uma Realidade Invisibilizada Pelo Estigma Social

14/07/2025

Classe Média e Uso de Drogas: Uma Realidade Invisibilizada Pelo Estigma Social

Por Raique Almeida

            A associação entre uso de drogas e marginalidade ainda é um dos principais obstáculos à construção de políticas públicas eficazes no campo da saúde e da assistência social. Durante décadas, o consumo de substâncias psicoativas foi vinculado às periferias urbanas, à juventude pobre e à criminalidade, em uma lógica que ignora o uso expressivo de drogas em outros estratos sociais, especialmente na classe média. Este artigo propõe um olhar crítico sobre o consumo de drogas nesse segmento, refletindo sobre a naturalização, invisibilização e aceitação social desse fenômeno.

            Erving Goffman (1988), ao discutir o conceito de estigma, nos ajuda a compreender como determinadas condutas são rotuladas negativamente dependendo de quem as pratica. O mesmo comportamento como o uso de maconha, por exemplo é interpretado de formas distintas quando praticado por jovens da periferia ou por universitários da classe média. A criminalização seletiva do uso de drogas reflete um processo de estigmatização profundamente racializado e classista, que opera para proteger os corpos brancos e privilegiados de qualquer associação com o desvio social.

            Pierre Bourdieu (1989) também contribui para esse debate ao abordar o conceito de habitus e a forma como os estilos de vida das classes sociais moldam o modo como seus comportamentos são percebidos e aceitos. O uso de drogas por membros da classe média é muitas vezes visto como “experiência”, “curiosidade” ou mesmo um direito individual. Já nas camadas populares, o mesmo uso pode ser imediatamente associado à delinquência.

            A socióloga Alba Zaluar (1994) argumenta que a classe média também é atravessada por processos de violência, exclusão e vulnerabilidade emocional, embora sob outras formas. O estresse, a competitividade e o culto à produtividade marcas típicas do modo de vida da classe média urbana criam contextos propícios ao uso de drogas como fuga, anestesia ou performance.

            Além disso, o consumo de drogas nessa classe tende a ser mais "medicalizado". O uso de substâncias como ansiolíticos, antidepressivos, medicamentos para aumento de desempenho ou mesmo álcool é socialmente aceito e incentivado, embora seus impactos físicos, emocionais e sociais possam ser tão graves quanto os provocados pelas drogas ilícitas. Como observa Tavares-Dias (2001), o consumo na classe média é muitas vezes “estético e funcional”, mas ainda assim inscreve-se em lógicas de dependência e negação.

            O tratamento desigual em relação ao uso de drogas é também expressão de um sistema de justiça seletivo. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), há uma profunda desigualdade racial e de classe na aplicação da Lei de Drogas no Brasil. Jovens brancos e de classe média flagrados com entorpecentes têm mais chances de serem tratados como usuários e responderem em liberdade, enquanto jovens negros e pobres são frequentemente encarcerados sob acusação de tráfico, mesmo com pequenas quantidades da substância.

            Essa invisibilidade do uso de drogas pela classe média contribui para sua perpetuação e para a negação de que esse estrato social também enfrenta problemas de dependência, abuso e sofrimento psíquico. Essa recusa em reconhecer o problema impede ações preventivas e tratamentos adequados.

            Reconhecer que o uso de drogas é um fenômeno presente em todas as classes sociais é passo fundamental para romper com políticas punitivistas e discriminatórias. A classe média, embora envolta em privilégios simbólicos e materiais, não está imune aos efeitos devastadores do consumo abusivo de substâncias psicoativas. É necessário construir políticas públicas que considerem as especificidades de cada grupo social, mas que garantam equidade no acesso à saúde, à informação e à justiça.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988.

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil. Brasília: IPEA, 2015.

TAVARES-DIAS, M. A. S. O consumo de drogas na classe média urbana: um olhar sobre os jovens da elite carioca. Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 23-40, 2001.

ZALUAR, Alba. Conflito e tolerância: violência e crime na cidade do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 9, n. 26, p. 85-102, 1994.

Blog

Informações sobre prevenção, tratamento e recuperação da dependência química e alcoolismo

Este site usa cookies do Google para fornecer serviços e analisar tráfego.Saiba mais.