Modernidade Líquida e o Uso de Drogas: A Fragilidade dos Laços e a Busca por Alívio no Mundo
05/08/2025

Por Raique Almeida
No livro Modernidade Líquida (2001), o sociólogo polonês Zygmunt Bauman analisa as transformações nas estruturas sociais que definem a contemporaneidade. Segundo ele, vivemos em uma era marcada pela fluidez das relações humanas, pela instabilidade dos vínculos e pela insegurança constante. Essa liquidez social, que substitui a rigidez e a solidez dos valores modernos por relações voláteis, impacta diretamente os modos de ser, de se relacionar e de enfrentar o sofrimento psíquico. É nesse cenário que o uso de drogas tanto lícitas, quanto ilícitas, se apresenta como uma tentativa de adaptação, alívio ou mesmo fuga diante das pressões e angústias de um mundo cada vez mais fragmentado.
Bauman afirma que “na modernidade líquida, o compromisso de longo prazo é substituído por conexões frágeis e descartáveis” (Bauman, 2001). Isso significa que, para muitos indivíduos, as redes de apoio emocional, como família, amizade, trabalho e comunidade, tornam-se precárias. A ausência de solidez nas relações humanas pode levar a sentimentos de solidão, ansiedade e falta de pertencimento. O uso de drogas, nesse contexto, não pode ser analisado apenas como uma questão individual, mas como reflexo de uma sociedade que oferece poucas possibilidades de escuta, acolhimento e pertencimento.
Além disso, a lógica neoliberal que atravessa a modernidade líquida reforça a noção de que o indivíduo é plenamente responsável por seu sucesso ou fracasso, mesmo em um mundo que constantemente lhe retira o chão. Essa responsabilização excessiva, somada à valorização do consumo como resposta ao mal-estar, incentiva práticas de busca por prazer imediato, incluindo o uso de substâncias psicoativas. Como destaca Sennett (2006), a cultura contemporânea valoriza o desempenho, a flexibilidade e a adaptação constante, o que pode gerar sentimentos crônicos de inadequação e esgotamento.
No campo da psicologia social, autores como Christophe Dejours (1992) também apontam para o sofrimento ético e emocional decorrente da precarização das relações de trabalho e da pressão por produtividade. Esse sofrimento, muitas vezes silenciado, encontra nas drogas uma forma de anestesia temporária. Assim, a dependência química pode ser compreendida como uma resposta subjetiva a uma realidade social adoecida.
Do ponto de vista da saúde coletiva, o uso problemático de drogas deve ser entendido de forma ampliada. Para o Ministério da Saúde (BRASIL, 2003), o consumo de substâncias está profundamente relacionado às condições sociais, culturais e econômicas dos indivíduos. O uso abusivo de drogas revela, muitas vezes, uma tentativa de preencher lacunas afetivas, de escapar de dores emocionais ou de pertencer a um grupo. Em contextos de vulnerabilidade social, esse consumo pode se tornar ainda mais acentuado.
Portanto, associar a leitura de Bauman com a compreensão do uso prejudicial de drogas é fundamental para perceber que o problema não está apenas na substância ou no sujeito que consome, mas nas dinâmicas sociais e afetivas que contribuem para a sua escolha. A ausência de vínculos sólidos, a instabilidade emocional e a cultura da performance são elementos que favorecem o aumento do sofrimento psíquico, e, consequentemente, a procura por formas de alívio, ainda que temporárias e prejudiciais.
Superar essa lógica demanda mais do que intervenções individuais. Exige a construção de políticas públicas intersetoriais, redes de apoio comunitárias, escolas acolhedoras e espaços de escuta que priorizem a saúde mental e a promoção de vínculos. Exige também o fortalecimento de práticas sociais baseadas na empatia, no cuidado mútuo e na valorização da vida em sua complexidade.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BRASIL. Ministério da Saúde. A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília: MS, 2003.
DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho: Estudo de Psicopatologia do Trabalho. São Paulo: Cortez, 1992.
SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: As consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.