A Redescoberta do Autocuidado durante a Internação
24/07/2025

Por Raique Almeida
A internação em clínicas de reabilitação representa, para muitos indivíduos em processo de recuperação da dependência química, uma oportunidade singular de reencontro consigo mesmos e de ressignificação de práticas cotidianas, como o autocuidado. Longe de ser apenas uma rotina higienista, o autocuidado assume contornos terapêuticos e simbólicos, tornando-se um instrumento fundamental na reconstrução da autoestima e no fortalecimento da identidade pessoal. Durante o período de internação, o sujeito é retirado de um contexto de vulnerabilidade, exposição e compulsões, e é inserido em um ambiente estruturado, onde o cuidado com o corpo, a alimentação, o sono e a higiene tornam-se expressões do cuidado com a própria vida.
De acordo com Ayres (2009), o cuidado em saúde deve ser compreendido como uma prática que considera o sujeito em sua integralidade, ou seja, em suas dimensões física, psíquica, social e espiritual. Nesse sentido, o autocuidado, quando estimulado de forma consciente e intencional durante a internação, pode funcionar como uma porta de entrada para a reconstrução de vínculos afetivos, do senso de valor próprio e da responsabilidade individual. O sujeito aprende, por meio de rotinas e intervenções, que ele é capaz de cuidar de si e de sua história, retomando escolhas que antes haviam sido delegadas à dependência e ao automatismo do uso de substâncias.
A prática do autocuidado é, portanto, resgatada como um direito e uma necessidade humana básica, muitas vezes negligenciada no período de uso ativo. Como aponta Canguilhem (2009), a normalidade da vida se dá na capacidade de cada um criar novas normas diante do adoecimento, e o ato de cuidar-se, nesse contexto, representa o início da criação de uma nova forma de viver. Além disso, a psicologia humanista de Carl Rogers reforça a importância da valorização da experiência subjetiva no processo de mudança, permitindo que o sujeito em recuperação possa perceber-se como digno de cuidado, amor e pertencimento (ROGERS, 1997).
É também no cotidiano da clínica, nos pequenos gestos como arrumar a cama, pentear os cabelos, alimentar-se de forma saudável ou respeitar horários que o autocuidado é reaprendido. Esses hábitos, antes considerados banais ou irrelevantes, tornam-se marcos simbólicos da retomada de controle sobre a própria existência. A redescoberta do autocuidado é, portanto, um elemento essencial para a manutenção da sobriedade após a alta, pois permite ao sujeito reconhecer-se como agente ativo no processo de cura, superando a lógica de passividade muitas vezes presente no uso de substâncias.
Dessa forma, o período de internação, longe de representar apenas confinamento ou privação, deve ser entendido como uma fase de reconstrução subjetiva e de reinvestimento afetivo em si mesmo. A redescoberta do autocuidado não apenas auxilia no processo terapêutico, mas também constitui um dos pilares para a reinserção social e para a sustentação da nova identidade que emerge com a sobriedade.
Referências
AYRES, J. R. C. M. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, 2009.
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
ROGERS, C. Tornar-se Pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.