Terapia Assistida por Realidade Virtual para Reprocessamento de Memórias de Recaída
18/06/2025

Por Raique Almeida
A dependência química é uma condição complexa, multifacetada e de difícil enfrentamento, que exige abordagens terapêuticas inovadoras, eficazes e centradas no indivíduo. Com o avanço das tecnologias digitais aplicadas à saúde mental, a Realidade Virtual (RV) tem emergido como uma ferramenta promissora para o tratamento de transtornos relacionados ao uso de substâncias. Entre as abordagens mais inovadoras, destaca-se a Terapia Assistida por Realidade Virtual para o Reprocessamento de Memórias de Recaída, uma estratégia que une ciência, tecnologia e psicoterapia para lidar com um dos aspectos mais desafiadores do tratamento: a prevenção de recaídas.
A recaída, infelizmente, é uma ocorrência comum no processo de recuperação de dependentes químicos. Ela pode ser desencadeada por diversos fatores, como estresse, exposição a ambientes de risco, gatilhos emocionais e memórias associadas ao uso da substância. De acordo com Marlatt e Gordon (1985), a recaída não deve ser vista como um fracasso, mas como uma parte previsível do processo de mudança de comportamento. Contudo, seu impacto emocional pode ser devastador, reativando sentimentos de culpa, vergonha e desesperança.
É nesse ponto que o reprocessamento de memórias se torna essencial. Muitas vezes, a lembrança de situações de uso ou recaída fica “presa” no sistema nervoso de forma disfuncional, provocando respostas emocionais intensas e dificultando a recuperação. O objetivo da terapia é trabalhar essas memórias de forma controlada, ajudando o paciente a resignificá-las e reduzir sua carga emocional.
A Realidade Virtual oferece um ambiente imersivo, controlado e seguro no qual o paciente pode ser exposto a situações simuladas que evocam emoções e memórias relacionadas ao uso de substâncias. Diferente da exposição in vivo, a RV permite que o terapeuta ajuste a intensidade dos estímulos conforme o progresso do paciente, evitando retraumatizações.
Além disso, o uso de tecnologias imersivas favorece uma maior engajabilidade e sensação de presença, o que potencializa a efetividade da terapia. Estudos recentes mostram que a RV pode aumentar a ativação de áreas cerebrais relacionadas à memória, ao medo e à tomada de decisão (Gorini & Riva, 2008), facilitando o acesso e o reprocessamento de conteúdos emocionais difíceis.
O reprocessamento de memórias é uma técnica psicoterapêutica que visa dessensibilizar e ressignificar lembranças traumáticas ou disfuncionais. Uma das abordagens mais conhecidas nesse campo é a EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing), que pode ser adaptada ao uso com Realidade Virtual.
Quando aplicado ao contexto da dependência química, o reprocessamento permite que o paciente:
- Reviva, de forma segura, memórias de uso ou recaída;
- Identifique pensamentos, sensações e emoções associados;
- Reestruture cognitivamente essas experiências, reduzindo a carga emocional negativa;
- Fortaleça recursos internos para lidar com situações semelhantes no futuro.
A Realidade Virtual potencializa esse processo ao criar cenários que simulam com precisão os ambientes, sons e estímulos visuais que fazem parte do universo do dependente — como bares, festas, bairros, ou mesmo situações familiares conflituosas.
- Exposição controlada e personalizada: O ambiente terapêutico virtual pode ser ajustado conforme a necessidade do paciente, respeitando seu tempo e seus limites emocionais.
- Maior engajamento: A imersão na experiência aumenta o foco e a motivação do paciente durante as sessões.
- Redução da evasão terapêutica: A novidade e a eficácia percebida da tecnologia favorecem a continuidade do tratamento.
- Reforço da prevenção de recaídas: O paciente se sente mais preparado para lidar com gatilhos reais, após enfrentar e reprocessar suas memórias em ambiente simulado.
- Complementaridade com outras abordagens: A RV não substitui, mas complementa abordagens tradicionais como a terapia cognitivo-comportamental, a psicoterapia psicodinâmica e os grupos de apoio.
Apesar de promissora, essa modalidade terapêutica requer cuidado. É fundamental que o uso da Realidade Virtual seja feito por profissionais capacitados e com supervisão clínica, respeitando os princípios éticos da psicologia e da psiquiatria. O paciente deve ser informado sobre o processo, seus objetivos, riscos e benefícios, e consentir de forma livre e esclarecida.
Além disso, é necessário garantir a segurança física durante o uso dos equipamentos (óculos de RV, fones, cadeiras adaptadas), e prever estratégias de acolhimento emocional caso o paciente apresente reações intensas.
A Terapia Assistida por Realidade Virtual para Reprocessamento de Memórias de Recaída representa um avanço significativo no cuidado integral da pessoa em sofrimento com a dependência química. Ao combinar inovação tecnológica com profundidade psicoterapêutica, essa abordagem oferece uma nova chance de reconstruir trajetórias, ressignificar dores e fortalecer a autonomia dos pacientes.
Em um mundo onde a tecnologia avança a passos largos, é essencial que a área da saúde mental se aproprie dessas ferramentas com responsabilidade, ética e empatia. O futuro do tratamento da dependência química é híbrido: une ciência, sensibilidade e inovação para promover vidas mais livres e saudáveis.
Referências Bibliográficas
- Marlatt, G. A., & Gordon, J. R. (1985). Relapse Prevention: Maintenance Strategies in the Treatment of Addictive Behaviors. The Guilford Press.
- Gorini, A., & Riva, G. (2008). Virtual reality in anxiety disorders: the past and the future. Expert Review of Neurotherapeutics, 8(2), 215–233.
- American Psychological Association (APA). (2023). Guidelines for the use of emerging technologies in clinical practice.
- Rizzo, A., Koenig, S. T., & Reger, G. (2019). Virtual reality for the treatment of PTSD and substance use disorders: Current and future directions. Frontiers in Psychology, 10, 1408.