A Infância como Gatilho: Trauma, Vínculos e Transtornos por Uso de Drogas

20/07/2025

A Infância como Gatilho: Trauma, Vínculos e Transtornos por Uso de Drogas

Por Raique Almeida

            A infância representa um período crítico para o desenvolvimento biopsicossocial do ser humano, sendo marcada por experiências que moldam os alicerces emocionais, afetivos e cognitivos ao longo da vida. Estudos demonstram que traumas precoces, negligência, abandono, abuso físico ou emocional e vínculos afetivos fragilizados têm forte correlação com o surgimento de comportamentos autodestrutivos na vida adulta, especialmente aqueles relacionados ao uso problemático de substâncias psicoativas. Quando as necessidades emocionais da criança não são atendidas, há uma lacuna no processo de construção do eu interior, o que pode levar a dificuldades de autorregulação emocional, baixa autoestima e comportamentos de risco, como o consumo de drogas.

            O ambiente familiar, que deveria oferecer segurança e acolhimento, muitas vezes é o próprio gerador de dor e sofrimento. Segundo Winnicott, a ausência de um ambiente suficientemente bom dificulta o amadurecimento saudável da criança. Nessa perspectiva, o uso de substâncias pode emergir como uma tentativa inconsciente de aliviar angústias internas não elaboradas, funcionando como uma forma de automedicação para dores psíquicas originadas na infância. A dependência química, nesse contexto, deixa de ser apenas um comportamento desviante e passa a ser compreendida como um sintoma de uma história marcada por rupturas afetivas e traumas não elaborados.

            A vinculação precoce, conceito desenvolvido por Bowlby, é central para entender como experiências afetivas moldam a saúde mental. Crianças que vivenciam relações instáveis ou hostis tendem a desenvolver padrões inseguros de apego, tornando-se mais vulneráveis a transtornos mentais e comportamentos aditivos na fase adulta. Além disso, a repetição transgeracional de padrões de violência, abandono ou negligência colabora para a manutenção de ciclos de sofrimento psíquico e exclusão social. Nesse cenário, o uso de drogas pode ser interpretado como um reflexo da tentativa de preencher ausências afetivas e amortecer a dor emocional.

            O entendimento da infância como um gatilho para transtornos relacionados ao uso de substâncias é essencial para a formulação de políticas públicas eficazes e intervenções terapêuticas que considerem o histórico emocional do sujeito. Trabalhar na prevenção de traumas infantis, no fortalecimento de vínculos familiares e no suporte à parentalidade são estratégias fundamentais para a redução da vulnerabilidade psíquica e social que predispõe ao uso abusivo de drogas. A escuta empática, o acolhimento humanizado e a reconstrução dos vínculos afetivos são caminhos possíveis para romper os ciclos de sofrimento e promover a saúde mental desde os primeiros anos de vida.

Referências

BOWLBY, John. Apego: a natureza do vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
WINNICOTT, Donald W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed, 1983.
KOLLER, Sônia H.; DELGADO, Patrícia. Resiliência e vulnerabilidade: construção de itinerários alternativos de desenvolvimento infantil. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 3, p. 523-531, 2004.
FISCHER, Benedikt; BEDENDO, Andressa; SANTOS, Ilana. Uso de drogas e fatores associados entre adolescentes brasileiros: uma análise da vulnerabilidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 8, e00074418, 2019.

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