Luto e Dependência Química: Interfaces Psicológicas e Desafios no Processo de Recuperação
07/07/2025

Por Raique Almeida
O luto é uma experiência psíquica universal e inevitável, provocada por perdas significativas, sendo a morte de entes queridos a forma mais reconhecida. Entretanto, o conceito de luto pode ser ampliado para incluir perdas simbólicas, como o rompimento de relações, perda da saúde ou de identidade social. No contexto da dependência química, o luto adquire contornos específicos, sendo vivenciado tanto pelos adictos quanto por seus familiares. Para o sujeito em recuperação, a abstinência implica uma ruptura com o estilo de vida anterior, o afastamento de companhias, lugares e hábitos que, mesmo sendo nocivos, estavam associados à sua identidade. Esse processo pode desencadear um tipo de luto ambíguo, marcado pela dor da perda e, ao mesmo tempo, pela esperança de reconstrução pessoal.
A vivência do luto no âmbito da dependência química é multifacetada. O sujeito em processo de reabilitação muitas vezes se depara com sentimentos intensos de vazio, culpa e desamparo. A droga, para muitos, funcionava como um mecanismo de defesa, uma tentativa de anestesiar dores emocionais profundas, incluindo lutos não elaborados. A interrupção do uso de substâncias revela, de forma abrupta, essas emoções, exigindo que o indivíduo as enfrente sem os recursos psicoativos antes utilizados. Segundo Lima e Barbosa (2017), a ausência de estratégias saudáveis de enfrentamento torna o sujeito mais vulnerável à recaída, pois o luto não resolvido pode reativar o desejo de consumir como forma de fuga psíquica.
Além disso, o luto vivido pelos familiares de adictos também é peculiar. Muitos pais, mães ou cônjuges experimentam um tipo de luto antecipatório ou simbólico, como se tivessem perdido o ente querido para a substância. Esse sentimento é alimentado por frustrações, promessas quebradas e o medo constante da morte iminente. De acordo com Ribeiro e Kantorski (2008), os familiares vivenciam um processo de desgaste emocional e social, muitas vezes marcado por isolamento, vergonha e desesperança. O reconhecimento dessas dores é essencial no processo terapêutico, tanto para o adicto quanto para sua rede de apoio.
O luto e a dependência química, portanto, estão entrelaçados por experiências emocionais profundas que exigem atenção clínica especializada. O tratamento eficaz não pode se restringir à desintoxicação física, mas deve contemplar o acolhimento das perdas, a elaboração das dores e a reconstrução de vínculos afetivos e sociais. A psicoterapia, os grupos de apoio e a espiritualidade são recursos fundamentais nesse processo. Como destaca Neimeyer (2009), a reconstrução do significado após a perda é um elemento central para o enfrentamento saudável do luto, o que também se aplica à jornada de sobriedade.
Dessa forma, compreender a intersecção entre luto e dependência química permite uma abordagem mais humanizada, sensível às complexidades emocionais envolvidas na recuperação. A escuta empática, a validação da dor e o incentivo à ressignificação das experiências são caminhos fundamentais para a reintegração do sujeito à vida, agora livre da substância, mas ciente de suas perdas e de seu potencial de reconstrução.
Referências:
LIMA, Marilene; BARBOSA, Sérgio. Aspectos emocionais no processo de recuperação da dependência química. Revista Psicologia e Saúde, v. 9, n. 1, p. 45-59, 2017.
NEIMEYER, Robert A. Aprender a dizer adeus: uma abordagem construtivista do luto. Porto Alegre: Artmed, 2009.
RIBEIRO, Mariana; KANTORSKI, Luciane. Vivências dos familiares de dependentes químicos: sofrimento e ressignificação. Revista Gaúcha de Enfermagem, v. 29, n. 1, p. 56-63, 2008.