O Papel da Espiritualidade E da Fé Na Recuperação de Adictos

18/06/2025

O Papel da Espiritualidade E da Fé Na Recuperação de Adictos

Por Raique Almeida

            A dependência química é um problema de saúde pública que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, trazendo consigo graves consequências não apenas para o indivíduo, mas também para suas famílias e comunidades. Trata-se de uma condição multifatorial, que envolve elementos biológicos, psicológicos, sociais, econômicos e também espirituais. Nos últimos anos, pesquisadores, profissionais de saúde e instituições têm reconhecido a importância da espiritualidade e da fé como fatores complementares e benéficos no processo de reabilitação.

            Antes de compreender o papel dessas dimensões na recuperação, é importante distinguir espiritualidade de religiosidade. A espiritualidade refere-se à busca por sentido, propósito e conexão com algo maior — o que pode ou não estar ligado a uma religião formal. Já a fé está geralmente associada à confiança em uma força ou poder superior, e pode manifestar-se por meio de práticas religiosas específicas, como orações, leituras sagradas, rituais e participação em comunidades de fé.

            De acordo com Puchalski et al. (2009), a espiritualidade “é o aspecto da humanidade que se refere à maneira como os indivíduos buscam e expressam significado e propósito e à forma como eles experimentam sua conexão com o momento, com o eu, com os outros, com a natureza e com o significativo ou sagrado”.

            Diversos especialistas afirmam que o uso de substâncias psicoativas pode estar relacionado à tentativa de preencher um vazio existencial, amenizar dores emocionais profundas ou dar sentido a uma vida marcada por traumas, perdas e exclusões. O psicólogo suíço Carl Jung, um dos primeiros a refletir sobre a dimensão espiritual da psique humana, escreveu certa vez a Bill Wilson, fundador dos Alcoólicos Anônimos (AA), afirmando que, em sua experiência, a cura para a dependência profunda seria uma experiência espiritual ou religiosa genuína. Para Jung, muitos dependentes buscam, de forma inconsciente, uma conexão perdida com o sagrado — e acabam encontrando nas drogas uma substituição destrutiva.

            Pesquisas internacionais mostram que a vivência espiritual tem efeito positivo na adesão ao tratamento e na redução das recaídas. Segundo Koenig (2001), pacientes que desenvolvem ou fortalecem sua espiritualidade durante o processo de recuperação apresentam menor índice de uso abusivo de substâncias e maior bem-estar emocional. A espiritualidade contribui para o fortalecimento da autoestima, promove a reflexão sobre escolhas de vida e oferece uma rede de apoio, especialmente quando vivida em comunidade.

            Além disso, ela pode funcionar como fonte de esperança, perdão, reconciliação e ressignificação do sofrimento. Para pessoas que vivenciaram experiências traumáticas, abandonos ou violências, a fé pode representar um novo ponto de partida, ajudando a construir um novo projeto de vida com mais autonomia e dignidade.

            A presença da espiritualidade também é marcante nos grupos de apoio mais conhecidos, como os Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA). O programa dos 12 Passos, utilizado por esses grupos, propõe o reconhecimento da impotência diante da substância e a entrega da vida a um “Poder Superior” como caminho para a sobriedade. Esse modelo tem sido amplamente estudado e aplicado em clínicas e comunidades terapêuticas, com resultados positivos.

            Importante destacar que, nesse contexto, o conceito de “Poder Superior” é aberto: pode ser Deus, conforme a fé individual, a força da coletividade, o amor familiar, ou até mesmo o compromisso com a própria saúde. Não se trata de impor uma crença religiosa, mas de reconhecer que a espiritualidade é uma dimensão legítima da experiência humana.

            É fundamental, no entanto, que qualquer abordagem espiritual ou de fé no contexto terapêutico seja aplicada com ética e respeito à diversidade cultural e religiosa dos pacientes. Nem todos professam uma religião ou têm o mesmo entendimento sobre o sagrado. Por isso, é essencial que a espiritualidade seja oferecida como uma possibilidade, nunca como uma imposição.

            Algumas clínicas e comunidades terapêuticas oferecem momentos de meditação, oração, leituras edificantes, rodas de conversa com temáticas espirituais, oficinas de arte com reflexão interior, ou mesmo a oportunidade de o paciente manter contato com sua igreja, templo ou grupo religioso. Essas atividades têm por objetivo fortalecer a consciência, o sentido de pertencimento e a abertura para o cuidado de si.

            O modelo de cuidado integral à saúde, proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS), considera que o ser humano deve ser assistido em suas dimensões física, emocional, social e espiritual. Ignorar a dimensão espiritual é tratar o indivíduo de forma fragmentada. Assim, em muitos casos, integrar fé e espiritualidade ao processo terapêutico é o que garante um tratamento mais humano, acolhedor e eficaz.

            Para os profissionais que atuam com dependência química, a escuta qualificada e a sensibilidade espiritual são ferramentas fundamentais. Ajudar o paciente a reconstruir o sentido de sua vida, a perdoar a si mesmo e aos outros, a reconectar-se com a esperança — isso também é terapia.

            A espiritualidade e a fé não substituem os tratamentos clínicos e psicológicos necessários, mas atuam como importantes aliadas no processo de superação da dependência química. Muitos relatos de sucesso demonstram que reencontrar um sentido maior para viver, confiar em algo além de si mesmo e sentir-se acolhido espiritualmente pode ser a chave para transformar sofrimento em força, e recaídas em recomeços.

            Promover esse cuidado espiritual, com respeito e amor, é acreditar na recuperação como um caminho possível — e profundamente humano.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Jung, C. G. (1976). Cartas. Petrópolis: Vozes.
  • Koenig, H. G. (2001). The Healing Power of Faith: Science Explores Medicine's Last Great Frontier. Simon and Schuster.
  • Puchalski, C. M. et al. (2009). Improving the Spiritual Dimension of Whole Person Care: Reaching National and International Consensus. Journal of Palliative Medicine, 12(10), 885–904.
  • Ribeiro, L. A. (2018). Espiritualidade e dependência química: uma abordagem complementar ao tratamento. São Paulo: Paulus.
  • Organização Mundial da Saúde (OMS). Conceitos de Saúde Integral. Genebra, 2003.

Blog

Informações sobre prevenção, tratamento e recuperação da dependência química e alcoolismo

Este site usa cookies do Google para fornecer serviços e analisar tráfego.Saiba mais.